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quinta-feira, 3 de março de 2011

Iur Ednas - quando os cliques jogam futebol

Já aqui referi algumas das brincadeiras preferidas da minha adolescência, como por exemplo, dar um uso diferente aos cliques da playmobil e aos bonecos Starwars. Um uso diferente daquele para o qual tinham sido destinados.

Mas na verdade, e em nome da honestidade, tenho a dizer que o uso que lhes dava era, quase exclusivamente, fazer com eles nada mais, nada menos, que grandes jogatanas de futebol. Dava-lhes nomes e organizava-os em equipas. Inventava nomes para as equipas e disputava campeonatos. Campeonatos que inteiramente registava em cadernos diários, com os resultados dos jogos, os nomes dos goleadores, do melhor jogador em campo, tudo. Esses cadernos ainda hoje existem. Se algum dia alguém resolver investigar os armários do meu antigo quarto, que ficará algures na casa onde ainda vive a minha mãe, por entre os escombros de cadernos, dossiers e resmas de papéis, encontrará talvez registos desses tempos. Deverá ser mais ou menos a sensação que um egiptólogo tem ao descobrir um novo sarcófago - do buda, ou lá o que é… - em pleno vale dos reis.

É que quem se der ao trabalho de revolver todo aquele entulho, apesar de ser à partida uma árdua tarefa, terá a recompensa de descobrir os documentos remanescentes de uma civilização inteira. Com nomes incríveis como aquela grande urbe, denominada Savle (a palavra Elvas invertida), que tinha também uma equipa de futebol. São provas factuais que se descobrirão naquele armário, importantíssimas para quem ainda tenha dúvidas de que o “Elvas CAD” chegou a ascender à primeira divisão na década de 80-90. A pessoa que duvide de tal façanha, que vá aos meus cadernos de registos das brincadeiras da altura. Ou então à internet.

Mas aconselho-a mais a ir aos meus baús. Lá encontrará, não apenas as intermináveis listas de equipas de futebol onde jogavam os cliques e os bonecos starwars (ou “jedis”, como lhes chamávamos na altura) mas também mapas desenhados com a geografia dos países e cidades onde eles viviam. É como vos digo, meus amigos, ter uma sessão no meu antigo quarto é como passar uma tarde a ver o canal História. Só que mais giro. Voltando à magnífica equipa que denominei de Savle, lá jogava o grande “Uemo lotrab”, um jogador que era, na verdade, o boneco do Lando Calrissian. Mais precisamente, com aquele fato com que ele foi resgatar o Han Solo às garras do malfeitor sapudo, Jabba the Hut. Enfim, quando digo garras… com aqueles bracinhos nem sei como é que o Jabba ascendeu no mundo do crime. Só mesmo tendo muitos amigos. Mas o Han Solo lá estava, impressionantemente crio-preservado, com as mãos em forma de súplica à frente do corpo. Isto apesar de, um filme antes (no Império Contra-ataca – filme que vi inúmeras vezes numa cassete beta, dobrado em castelhano), quando ele foi submetido ao processo de congelação se encontrar com as mãos algemadas atrás das costas. Mas como diria Ed Wood, isso são detalhes que não interferem com a generalidade da mensagem que se quer passar no filme.

Voltando aos registos históricos das minhas brincadeiras de infância, é interessante recordar outros nomes de equipas, como a grande Mizrav, onde jogava, à baliza, o grande Solrac Attuom (uma interessante mistura do nome próprio do meu irmão com o apelido do Gustavo). E Solrac Attuom era um boneco que por acaso nem era clique, nem era jedi. Era um herói da Marvel, mas nem sei que herói era. Tinha penas de ave (havia de ser de quê?) ao longo dos braços e estes apontados para cima, pelo que fazia um excelente papel como guarda-redes. E não, não era o Stratus do He-man, apesar de também termos esse boneco, mas jogava noutros campeonatos. Os “Masters do Universo” eram muito grandes para competir com cliques e jedis. E por aí fora, havia jogadores com nomes sugestivos como Ez-Suil Selvacnog e Iur ednas.

Em particular, Iur Ednas era um clique com o tronco vermelho e as pernas brancas. Talvez tivesse sido, numa vida anterior, um bombeiro. Quem sabe? Só ele. Só o clique sabe. O que eu sei é que ele foi um grande extremo esquerdo da Ahlivoc arbez (quando o Sporting da Covilhã também experimentou os seus tempos áureos na primeira divisão – quem não teve tempos áureos fomos nós a ver tantos resumos de jogos deprimentes no Domingo Desportivo. Com o peso na consciência do TPC ainda por fazer).

Para quem ainda não tenha descortinado, por isto ser uma película repleta de “suspênce”, Iur Ednas não era mais que o nome invertido no nosso amigo Rui Sande. E sim, o seu nome era mesmo Sande. Mas não era uma sandes simples. Tinha toda uma Horta no meio. Uma Sande vegetariana, com tudo a que se tinha direito.

Confesso que Rui Hortas Sande passou-me um pouco ao lado durante o ciclo preparatório. Foi só no secundário que privei mais com ele e nos demos a conhecer mais um ao outro.

Foi mesmo o Rui o protagonista do maior elogio que me fizeram durante os meus tempos de adolescência. Arriscar-me-ia a dizer o maior elogio que me fizeram até hoje. E foi um elogio que surgiu do nada, e quando eu menos esperava. Eu que, como já tive a oportunidade de dizer, odiava a minha voz. Que é como que dizer, não gostava do meu “self”. Talvez porque soubesse coisas de mim que mais ninguém sabia. Conhecia-me como a palma da minha mão e isso não é bom. É chato quando a nossa relação connosco mesmo passa a fase da paixão e entra na monotonia, na habituação, naquele rame-rame de quem vai a um restaurante e já nem consegue ter uma conversa interessante. E é só chato porque não nos conseguimos livrar de passar o resto da vida um com o outro. É que nem é o corpo da alma. Isso, de acordo com alguns filósofos, ainda se consegue separar. Mas então e a alma da alma?

Bem, voltando ao Rui Sande, aquilo não foi um elogio qualquer. Passou-se durante aqueles tempos mornos de férias de verão em Elvas, em tempos pré-universitários, quando saíamos à noite na esplanada do Clube de Ténis a emborcar imperiais. Foi nessa altura que a minha relação com o Rui se aprofundou um pouco mais e estive mais atento a algumas das suas filosofias. E o elogio foi, textualmente, “o Guilherme é uma montanha difícil de escalar” – estávamos também com o João Carlos, daí ele referir-se a mim na 3ª pessoa. Era uma observação que ele estava a fazer ao João Carlos.

E aquilo que ele disse – pensei cá para mim - podia significar qualquer coisa, mas fosse o que fosse é sempre bom ser comparado a uma montanha. Claro que na altura, de tão contrafeito comigo próprio, tentei destruir aquele momento poético do Rui, retorquindo que a montanha que ele via não era mais que um separador que coloco à minha frente para me esconder das pessoas. Para que ninguém me veja, realmente, como sou. A montanha era apenas um desenho numa espécie de papel de parede. E quem transpusesse o papel de parede encontraria então uma extensa e deserta planície, ou seja, o meu “true self”. Decerto, também difícil de atravessar, mas não por ser complexo. Apenas por ser uma seca, como qualquer deserto. É como aquelas comédias românticas que vemos nos clubes de vídeo. Se não as alugamos, não é porque temos receio de não perceber o filme, mas simplesmente porque receamos ser acometidos por um aborrecimento de morte.

E foi assim, com esse papel de parede foleiro, que arruinei um momento que o Rui me queria oferecer. O elogio que me queria fazer. E com que direito? Ele tinha razão. Todos nós somos montanhas. Vejo, e sempre vi, em cada um dos meus amigos de infância, um ser humano complexo, uma montanha difícil de escalar.

Salvando, obviamente, raras excepções.

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